segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Consciências

Consciência negra em Feira de Santana, 2011


Consciência s.f. 1 Sentimento ou reconhecimento que permite ao ser humano vivenciar, experimentar ou compreender aspectos ou a totalidade de seu mundo interior (HOUAISS)



Jorge de Angélica, músico
Foto: Dolores Rodriguez
Rapaz, ser negro, hoje, na maioria das vezes, é ser usado por algumas entidades que se dizem protetora da cultura e dos direitos dos negros, e por outros que usam os negros nos dias de micareta e depois os jogam ao léu. O nego dá o sangue pela sua escola de samba, ou seja lá o que for, e no máximo chupa uma cachaça, mas se cair doente no resto do ano essas entidades não oferecem qualquer tipo de proteção. O que eu vejo mesmo é que o negro ainda está sendo usado como massa de manobra.







                     
Nunes Natureza, compositor do Afoxé Pomba de Malê e autônomo
Foto: Patrícia Martins


Ser negro em Feira de Santana é ser vítima de tanta coisa. Os preconceitos econômico e social ainda imperam e se misturam, pelo fato de ser negro ainda é ser pobre, para a grande maioria. Este é um dia para se ativar contra essas agruras que o negro sofre, mas a consciência tem que ser permanente e as entidades têm que trabalhar reforçando o sentimento de cidadania, para que haja igualdade e igualdade de oportunidades.



Ericivaldo Veiga, sociólogo

Foto:Patrícia Martins


A própria sociedade, com essa dinâmica pela qual ela vem passando, o que se chama de mundo globalizado, permite o aparecimento de concepções novas, de ideias novas e de formas novas das pessoas se verem e se comportarem diante do mundo. Então, é meio complexo ter uma alternativa única de uma pessoa se ver enquanto um ator social com uma identidade definida: negro, ou índio, enfim, a gente vê tanto exemplo das diversidades sexuais, o mundo se abrindo para tantos comportamentos, para tantas posições que antes não eram bem toleradas.
É muito complexo dizer hoje em dia que ser negro corresponda a apenas uma concepção de mundo. Ser negro, hoje em dia, como ser branco, como ser índio, como ser homossexual, como ser de determinada religião ou ser de outra, diz respeito a um indivíduo que tem expectativas diversas, que não estão resumidas apenas à cor da sua pele, nem ao seguimento religioso a que ele está associado. Ser negro, como fazer parte de qualquer um desses grupos, corresponde a ter uma compreensão crítica da vida e de como ela funciona.




Frei Cal, vereador 
(Por e-mail)
Foto: Gleidson Santos


Ser negro é viver a vida que ao longo dos anos foi negada, tirada e explorada; é ter liberdade, terra, moradia, educação, saúde, segurança e poder ir e vir tendo os seus direitos respeitados.
É ter orgulho da cor, da raça, da história, cultura e religião, é nunca esquecer da Mãe África  e lembrar sempre dos irmãos que um dia vieram do além mar, é continuar contando e recontando o que fizeram conosco, mas também é falar das vitórias  e conquistas que são alcançadas. É ter esperança e nunca desanimar, pois sabemos que a luta na verdade ainda não acabou.

Simone de Angélica, equéde da casa de Mãe Sônia, na Rua Nova
Foto: Edeilson de Souza


Pra mim, ser negro significa tudo, pois é toda a minha experiência de vida que está incluída nestas duas palavras.



Rafael de Jesus Santana, funcionário do Cuca/Uefs
Ser negro é bom. Eu gosto de ser negro, apesar de ter as sua dificuldades. Por exemplo, a maioria dos negros fica atrás dos brancos quando a questão é educação. Mas a galera negra está superando, aos poucos. Estão correndo atrás da igualdade, através dos estudos, do conhecimento, e assim se vai levando as conquistas mais adiante.


Gleidson Sena Dias, estudante de Geografia na Uefs

Ser negro na sociedade em que vivemos, ainda é complicado, porque há discriminação ao ser negro. Além de não ter o espaço que pessoas de pele clara têm – embora aqui no Brasil se diga que não há raça específica, que somos todos iguais, etc.–, para o negro conseguir alcançar um patamar mais elevado na sociedade ainda tem que se esforçar bastante. Então, fica mais complicado, mais difícil, porque o negro tem que se desempenhar muito mais, tanto nos estudos quanto no mercado de trabalho. Ele acaba tendo que ter que fazer seu diferencial, não pode ser apenas mais um, tem que ser o número um.




Hailton Getúlio, artista visual e oficineiro da OCA/Cuca
Foto: Patrícia Martins

Eu penso no conjunto, sobre as pessoas de todas as cores: negro, branco ou amarelo. As pessoas devem pensar em procurar seu espaço na sociedade. Eu não acredito que a sociedade esteja muito preocupada com o fato de você ser negro ou não, ela pergunta mais quem você é e o que faz. Que existe racismo, existe, mas todo e qualquer homem, ou mulher, deve procurar a sua cidadania, estudar, se qualificar e ter uma profissão para conviver em sociedade. Hoje existem políticas afirmativas em todos os seguimentos, o que facilita muito, já que nós temos uma cota muito vasta de direitos. O que precisamos aprender é acioná-los, mas isso só acontece com o exercício constante da cidadania.


  
Maria das Graças, 54, aluna da oficina de cerâmica da OCA/Uefs
Foto: Gleidson Santos

As pessoas conseguem alguma coisa lutando. Se a gente ficar nessa de ‘discriminação racial’, não sei quê, e de braços cruzados, não vai a lugar algum. Trabalho desde criança e sei do valor das coisas. Adolescente, em Salvador, eu carregava água pra ganhar dinheiro. Chorei muito, porque não pude estudar, pois não tinha o dinheiro para pagar a taxa de admissão para seguir os estudos, nem pra comprar farda, pois o dinheiro que ganhava tinha que botar em casa. A gente tem que correr atrás.


Jamile, 21, aluna de oficina de desenho da OCA/Cuca
Foto: Gleidson Santos


Esses dias saíram, em todos os órgãos de imprensa, dados do IBGE dizendo que Salvador é a cidade mais negra do País. Pelo fato de Salvador ser a cidade mais negra, não deveria ter tanto preconceito como tem. Se você for negro e for procurar um emprego num shopping, lá, não é bem visto, como um candidato que não tem pele negra. Este, provavelmente, ficará com a vaga.



Gleidson Santos, repórter policial e fotógrafo do Folha do Estado
Com alguns anos de experiência em jornalismo policial, nem preciso de dados do IBGE para constatar que 80% da população carcerária aqui em Feira, como em quaisquer outras cidades brasileiras, são compostos por negros. Isso não quer dizer, necessariamente, que negros cometam mais crimes que brancos - pode até cometerem, por terem menos chances e perspectivas de consumir, inegável herança do passado escravocrata. Mas eu acredito que a superlotação negra nas cadeias se dá também porque a visão da Justiça, e até da polícia mesmo, ainda é outra sobre o negro, que ainda parece ser mais vulnerável à punição.
Por outro lado, ser negro sempre foi bom, mas agora está melhor ainda. As políticas afirmativas em prol do povo afrodescendente e do pobre, de um modo geral, não são tudo, mas já é um bom começo. 

Publicado na edição nº 3.654, de 20 de novembro de 2011, do Folha do Estado da Bahia













domingo, 20 de novembro de 2011

Em barro, tintas ou fotos, sempre com fé na arte

               Fotos: Patrícia Martins
Em fotografia feita no dia 17 de agosto de 2011, Hailton trabalha numa peça de encomenda

São mais de 14 anos de experimentações em diversas linguagens em artes plásticas, e igual ou maior número de participações em oficinas de pintura, cerâmica, máscaras, azulejo, mosaico e fotografia, entre Feira de Santana e o Museu de Arte Moderna (MAM), em Salvador. Hailton, que não está apenas flertando com a cultura afro-brasileira, em especial sua religiosidade, diz não ter preferência por algum suporte em especial, embora saiba que a tendência das artes contemporâneas esteja mais ligada à fotografia, e esta seja também mais uma de suas atividades.

Logunedé é demais, sabido, puxou aos pais
Se a alma do homem é naturalmente religiosa, como sentenciou Orígenes, entre os séculos II e III de nossa era, é natural que das mãos de Hailton Getúlio saiam obras que, não sendo propriamente sacras, são sacramentadas pelo precioso sentimento de “pertencimento” – caro e necessário para o povo de origem africana, espalhado pelo mundo ocidental pela escravidão.
“Esta coisa está tão no sangue, que eu não sei dizer se comecei a fazer arte por causa da religião”, ou se foi o contrário, diz o filho de Logunedé (ori) e Baluaê (juntó). Seu bisavô era babalorixá em Salvador, seu avô era ogã e o pai também fazia parte da família de santo.Hailton tem 23 anos de iniciado e mais de 10 como axogun (sacerdote responsável pelo sacrifício de animais em rituais).


Não chuta, que é macumba!
“Tudo o que faço em arte está muito ligado à religião. A minha visão e minha luta são esta. E este é o meu modo de colaborar com a manutenção dos signos do candomblé. Acredito mesmo que é um modo de fazerem respeitá-la”, declara. “A intolerância de um modo geral, em particular a religiosa, tem trazido sérios problemas para o povo de santo, que ainda tem pouca representatividade e visibilidade na sociedade. Precisamos, urgentemente, de uma cultura de tolerância e de convivência com as mais diversas denominações religiosas. ‘Chutar porque é macumba’, como dizia uma música de axé, é alimentar o ódio entre as pessoas. O correto seria não chutar justamente porque é macumba. Este é o caminho para a cultura de paz de que tanto precisamos”, completa.

Dijunas
Em abril de 2010 Hailton levou para o Museu de Arte Contemporânea (MAC) a sua quarta exposição individual (tendo também participado de 10 exposições coletivas), composta por 18 telas, intitulada “Dijunas”. O projeto veio logo depois que o artista plástico, que trabalhou por mais de onze anos na Biblioteca Central Julieta Carteado (BCJC) como auxiliar de bibliotecário, pôde dedicar-se exclusivamente às artes.
   
Encomendas
“Quando eu trabalhava na BCJC, além dos cursos e oficinas dos quais participei, não tinha tempo pra nada. Era difícil conciliar meu trabalho com a arte”, conta. Ele também diz que, mesmo afastado de funções burocráticas e trabalhando com o que sempre desejou, não tem tempo pra dar conta das encomendas, que vão estátuas em argila, telas e mosaicos. “Se eu fechar minha agenda hoje e disser ‘não pegarei mais encomenda enquanto não der conta das que já tenho’, levaria ainda uns cinco anos para entregar tudo o que tenho que entregar”, revela o artista. Cansaço? “Nunca. Afinal faço o que sempre quis fazer”, finaliza.

Publicado na edição nº 3.649 do Folha do Estado da Bahia, 13 de novembro de 2011

sábado, 5 de novembro de 2011

Maior acervo de negativos de Feira

Foto: Patrícia Martins
Elydio possui mais de dois milhões de negativos, acumulados em sete décadas de carreira, todos reveláveis
Quando o senhor Elydio Azevedo, nascido em Amélia Rodrigues, veio para Feira de Santana, na década de 1940, a cidade tinha apenas 10 automóveis, a avenida Senhor dos Passos, a Rua Direita e a Rua de Aurora (atual Filinto Bastos). “Havia a Getúlio Vargas, só que muito menor do que vemos hoje”, relembra.

Este fotógrafo que tem como lema “amar o que faz, para fazer bem”, sem sombra de dúvida, possui um dos mais ricos acervos de imagens da memória feirense da segunda metade do século passado para cá. Ele é dono de mais de dois milhões de negativos, todos separados cuidadosamente por pedaços de papel vegetal e guardados em pequenos envelopes de cartas acondicionados em dezenas de caixas de isopor, aos milhares e em caixas do mesmo material em diversos tamanhos. Em cada uma delas há um papel onde estão registrados assuntos, datas, pessoas e eventos a que dizem respeito os negativos. Todos catalogados pelo próprio autor. “Nunca me desfiz de um negativo sequer, nem das câmeras fotográficas que fui adquirindo ao longo da vida, e todas elas estão em condição de uso”, assegura.

O patrimônio de imagens que construiu em uma longa carreira chama a atenção pela importância histórica e pela qualidade do material. “Todos os meus negativos, desde os mais antigos, mantêm a mesma qualidade de revelação de quando foram feitos”.

Elydio diz que já foi procurado pela Universidade Estadual de Feira de Santana, que se mostrou interessada em salvaguardar seus negativos, importantes testemunhos da história feirense. “Até me ofereceram cinco pessoas para fazer a limpeza e a catalogação ao modo deles. Mas esse material é dos meus netos. É a herança que posso deixar para eles”, diz.

Com uma filha e um neto apaixonados por fotografia, seu Elydio acredita que a proposta da Universidade não é a única alternativa para a manutenção de sua obra. Seja qual for o destino dos negativos, ensejamos que aconteça de modo que eles possam ser acessados por pesquisadores e estudantes. Afinal, trata-se de uma objetiva que em quase sete décadas registrou e meticulosamente preservou milhões de instantâneos de uma cidade que se transforma tão velozmente.

Publicado na página 07 da edição 3.643 do Folha do Estado, domingo 06 de novembro de 2011

domingo, 30 de outubro de 2011

"A forma de uma cidade muda mais depressa, ai de nós, que o coração de um mortal" (C. Baudelaire)

    Foto: Edson Machado
 Em questão de antiguidade e de estilo arquitetônico a gente não tem muito que mostrar, esta é que é a verdade, diz Franklin Maxado


Surgida nas primeiras décadas do século 18, Sant'Anna dos Olhos d'Água da Feira se desenvolveu em torno de uma capela em homenagem a Senhora Sant'Ana e São Domingos, erigida pelo casal de portugueses Domingos Barbosa de Araújo e Ana Brandão, em 1732.
O local onde foi erguida a capela era um ponto de intersecção entre Cachoeira (maior vila da província da Bahia) e São José das Itapororocas (hoje distrito de Maria Quitéria), que à época era a entrada para o sertão e para onde convergiam parte das mercadorias desembarcadas no porto de Cachoeira, que por sua vez recebia as boiadas vindas do sertão.
Com a demanda de mercadorias do sertão para o litoral, e vice-versa, os comerciantes de gado, açougueiros, compradores de boiadas e mercadores de diversos outros produtos saíam de Cachoeira para receber e ‘olhar’ as boiadas antes que elas chegassem àquela vila, a fim de comprar mais barato e escolherem os melhores bois. “Por outro lado, os fazendeiros do sertão não precisavam ir até Cachoeira para venderem suas boiadas e comprarem produtos que eram comercializados naquela vila do Recôncavo, como ferramentas agrícolas, pratos, talheres, candeeiros e uma infinidade de produtos que desembarcavam em seu porto”, explica Franklin Maxado.
O comércio criado em torno da capela de Sant’Anna, a Antiga Feira do Gado toma vulto entre o final do século 18 e início do século 19, o que fez com que muitos comerciantes e fazendeiros começassem a estabelecer moradias no Arraial de Sant’Anna.
As construções que foram erguidas naquela época (das quais resta quase nada), não eram tão marcantes como as de estilo barroco que já haviam sido levantadas há algum tempo em Cachoeira. “As primeiras construções de Feira de Santana eram ‘arremedos’ de diversos estilos, sem grandes pretensões arquitetônicas”, diz o cordelista, citando de memória os naturalistas alemães Von Spix e Von Martius, que visitaram a vila de Sant’Anna em 1819: “Na época, eles escreveram que o lugar não passava de um simples vilarejo, um arruadozinho de casas”. O que isso quer dizer? “Em questão de antiguidade e de estilo arquitetônico a gente não tem muito que mostrar, esta é que é a verdade”, diz Franklin.
São poucos os marcos arquitetônicos de alguns períodos de Feira de Santana, que é apenas mais uma entre tantas outras cidades brasileiras que se consomem - com ou "sem" aspas - enquanto progridem.

 Foto: Filipe Oliveira

A segunda construção representativa da arquitetura feirense que sobrevive é o sobrado de João Pedreira, construído em frente à praça que leva o mesmo nome, em frente à igreja Senhor dos Passos. Resumo de uma longa história: João pedreira, um dos homens mais ricos de Feira na virada do século 19 para o século 20, construiu a praça que leva seu nome e muitas casas de aluguel próximas ao casarão, o único sobrevivente da época, ainda em bom estado de conservação e que mantém a fachada da época, embora com algumas intervenções modernas, e atualmente é mais conhecido como o ponto do Bobs, entre a Senhor dos Passos e a Getúlio Vargas.
O valor histórico da construção está no fato de ela ter acolhido a primeira Intendência de Feira (órgão de administração pública equivalente, hoje, à prefeitura); ter sido a primeira Câmara de vereadores, quando foi instaurada a Vila de Feira de Santana, já desmembrada de Cachoeira. O prédio também serviu de cadeia, agência dos Correios, biblioteca pública, sede da Filarmônica Euterpe, sede de uma sociedade de artistas (Sociedade de Cultura Artística de Feira de Santana) e, também acolheu o escritório de advocacia de José Falcão e Chico Pinto, importantes vultos políticos da história da cidade.

Uma honorável ruína
 
    Vista do interior do Palácio do Menor

A Santa Casa de Misericórdia (mais conhecida atualmente como o Palácio do Menor). Sua construção teve colaboração do imperador Dom Pedro II, que doou dois contos de réis na ocasião de sua passagem por aqui, em 1859, e foi inaugurada em 25/03/1865.
Sob tutela do SESC, o prédio nada mais tem, em seu interior, que uns restos de madeira de lei cobertos há anos por uma hera que se revigora a cada temporada de chuvas e paredes laterais sustentadas por vigorosas colunas. Tudo isso  talvez aliado a um bom óleo de baleia. Há um muro belíssimo, com colunas e gradil de metal.. Mas, até quando essas coisas ainda serão recuparáveis de fato? Que soluções encontrará o órgão responsável pela intervenção?
Desde 2008 fala-se, na imprensa, na sua restauração - termo que se torna cada vez mais contestável, neste contexto, com o passar do tempo. Restaurante popular e teatro estão entre as futuras atribuições do espaço, que é mais que apenas o prédio em si. Quem o conhece sabe que dali se tem uma bela vista.

        Uma cidade que se devora


             Foto: Patrícia Martins
  Sem bairrismo, diz o arquiteto Juraci Dórea, as pessoas não se preocupam mais em preservar a memória, não pensam mais em preservar a arquitetura, nem pensam em preservar a cidade

Feira de Santana passa por um processo que acompanha todas as cidades brasileiras, de um modo geral. Ela não é um caso isolado. O ritmo de perda de identidade em Feira é muito mais tolerável. Isto talvez seja pelo fato de ela ser uma cidade cosmopolita, ou seja, por estar situada num entroncamento rodoviário ela atrai pessoas de vários pontos. Esta é uma característica que fez parte da própria formação da cidade, que cresceu em função disso.
Para o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea, os feirenses não têm mais uma referência em relação à cidade. “Uma característica típica das cidades do interior, o ‘bairrismo’, já não existe mais em Feira. Então, as pessoas não se preocupam mais em preservar a memória, não pensam mais em preservar a arquitetura, nem pensam em preservar a cidade. Essa mudança na arquitetura e na paisagem da cidade pode ser percebido num ritmo intenso, principalmente a partir dos anos 1970, através de uma série de elementos que contribuíram com a descaracterização do patrimônio arquitetônico”.
A primeira dessas transformações, e a mais grave, segundo Juraci, foi a mudança da feira livre, que era a principal referência identitária de Feira de Santana. Segundo ele, com a sua transferência, a cidade perdeu o elemento essencial da sua formação e de sua história.
A feira livre ocupava cerca de 8 quilômetros quadrados, nos quais trabalhavam cerca de seis mil feirantes das cidade e de diversos municípios da região. Esse aglomerado de gente, barracas e o trânsito que começava a sua intensificação naquela década, provocava reações variadas. Uns contra e outros a favor da transferência da feira para um lugar específico. Venceu o segundo grupo, na carona da industrialização que começava em Feira de Santana, com a implantação do Centro Industrial Subaé, o crescimento populacional que se direcionava para o centro urbano da cidade ao longo da década de 70. A mudança da feira livre para o Centro de Abastecimento ocorreu mesmo em 1977, embora o projeto tenha sido elaborado em 1966 e as obras tenham começado apenas um ano antes de sua inauguração.
Juraci também evoca como perda identitária alguns elementos que também foram extintos, ou estão em vias de, que valem registro. Uma: "A antiga feira do gado, ao redor da qual nasceu e cresceu Feira de Santana, é uma das principais referências histórica e turística da cidade. O local também serviu de cenário para algumas das mais tocantes cenas de um dos mais importantes filmes já produzidos no Brasil, entre eles Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha".

sábado, 29 de outubro de 2011

A Caminha do Folclore teve início na gestão da professora Yvone Cerqueira, à época na direção do Centro Universitário de Cultura e Arte (CUCA), através da proposta de Tânia Augusta, “a verdadeira idealizadora do evento” de acordo com Celismara Gomes, diretora do Cuca. Ela começou pesquisando as manifestações folclóricas da região, até chegar à ideia de trazer os grupos representantes de cada tipo de manifestação para um espaço em Feira de Santana, em forma de desfile, como acontece até hoje, em sua 12ª edição.
Celismara explica que inicialmente havia uma proposta de participação das escolas de Feira de Santana, porém, a comissão organizadora teve que repensar quais grupos poderiam, de fato, participar da Caminhada. “A gente resolveu priorizar os grupos de raiz, os que trazem os traços culturais da nossa região, como a Quixabeira da Matinha, os grupos de samba de roda, grupos de capoeira regional, capoeira de Angola, vaqueiros encourados, quadrilha junina, as burrinhas, maculelê e o pessoal da bata de feijão, entre outros”, explica.
Quanto à participação, tanto de integrantes de grupos e de expectadores, o aumento a cada ano é considerável, a ponto de a Caminhada ser colocada no roteiro dos eventos oficiais da cidade. “Com a ajuda da PM e do Exército, a 11ª Caminhada conseguimos estimar a marca de 15 a 20 mil pessoas assistindo e 5 mil participantes. Este ano a Caminhada contará com mais de 100 grupos, oriundos de diversas localidades, da cidade, dos distritos e outros municípios”, informa Celismara.
A diretora do Cuca aponta que o prazer pela participação é a principal característica das pessoas que compõem os grupos. “Eles vêm pela vontade de participar e mostrar seus trabalhos, pois não há qualquer tipo de remuneração. Apenas oferecemos transporte dos grupos dos distritos e passagens para os da cidade, um café da manhã no Amélio Amorim para cinco mil pessoas e água durante o percurso”, afirma.

FOLCLORE OU CULTURA POPULAR?
Há quem já estranhe o primeiro termo, por achá-lo ‘defasado’ ou dotado de uma carga simbólica que não dá mais conta das atuais demandas apresentadas por manifestações emanadas do povo em tempo de globalização.
“A cultura popular é um conceito muito abrangente, é visceral, de raiz – a que veio primeiro. É muito difícil conceituar o que é cultura popular, mas o termo folclore é algo que não se usa mais”, explica o produtor cultural Hygor Almeida. Segundo ele, quando se fala em folclore ou folclorização, acaba-se minimizando o conceito de cultura e transformando “uma expressão popular que é fantástica, que faz parte da identidade de um povo, numa coisa ‘excepcional’, num pacote turístico pronto para ser vendido”.
“A cultura popular não é folclore”, frisa o produtor, para depois explicar: “Digamos que o folclore faz parte da cultura popular, mas é um conceito restrito e reduzido”. Exemplo? “Quando se fala de Saci Pererê, Mula sem Cabeça e Caipora, isto é folclore. Quando a gente fala de expressões como samba de roda, quadrilhas juninas e reisados, trata-se de cultura popular. O folclore faz parte da cultura, mas ele é um conceito muito menor, muito reduzido”, diz.
Divergências nomenclaturais à parte, a Caminhada do Folclore deste ano deve contar com os mais diversos modos de expressão da cultura popular da região que se tornaram normas com o passar de muitos anos, sendo repassados de geração a geração através da oralidade e da prática.
Do início deste século para cá Feira de Santana, através da Uefs e outros órgãos parceiros, vem reagindo contra a apatia e a amnésia culturais, com retomada (Bando Anunciador) e criação (Caminhada do Folclore) de expressões populares, fazendo frente à massificação pela qual a indústria cultural tem sido responsável e sua sintomática apatia.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Conta um conto sem alterar um ponto

 Texto: Paulo Rabelo
 Fotos: Tomaz Coelho






O uso dos cocheiros (Lion Guimarães e Márcio Nunes) como porta vozes do narrador machadiano é uma grande sacada

“Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela”, propõe o narrador do conto A Cartomante, por um dos Cocheiros. Esta personagem (duplicada), que é secundária no conto e no palco faz as vezes do narrador machadiano, é uma grande sacada do Grupo Conto em Cena neste espetáculo. Os cocheiros (Lion Guimarães e Márcio Nunes), ‘conduzem’ Vilela (Fernando Pedro Maria), Camilo (Welber Oliveira) e Rita (Leyde Alencar) por ruas cariocas e pela deliciosa narrativa, pontuada por sentenças brilhantes carregadas de pessimismo acerca da natureza humana, comum ao Bruxo do Cosme Velho.

Tal qual
Sobre a fidelidade textual, o diretor afirma que alguns trechos do conto sofreram “remanejamentos”, necessários “para tornar a história mais acessível ao público, e mais fluida, de um modo geral. Durante a concepção e ensaios verificamos que funcionava melhor assim”. E lembra, logo a seguir, que “não há cacos. Todas as palavras estão no texto”.
Cenário, luz, figurino e trilha sonora que pontua algumas cenas, em tudo há ares de época. Percebe-se, pelos resultados, pesquisa, bagagem e um apurado senso “do que funciona”. Nenhum elemento ali parece gratuito, sem propósito. Tudo funciona para que a plateia tenha contato com o melhor de nossa literatura através das artes cênicas. Na “tradução” do conto para o drama, primou-se pela coerência e simplicidade.

Da plateia
“Sempre frequento teatro aqui em Feira, e também em Salvador, onde morei por quase 10 anos. Aqui, faço questão de ir ver as peças itinerantes do Projeto Palco Giratório (SESC) que vêm a Feira de Santana e as produções locais. Não me lembro de algo feito aqui que me deixou uma impressão comparável à de A Cartomante. A cada instante eu me surpreendia com o que estava vendo. Eles contaram uma história ambientada no final do século XIX, sem o mofo de teatro de costume, e com recursos criativos e modernos”, elogiou a designer Tatiane Alves.

Quando menos é mais

O produto final de um espetáculo não tem, necessariamente, relação direta e de dependência com grandes produções

Talento aliado à gana de fazer o melhor com o “tudo” (que na verdade, em termos de recursos necessários, é muito pouco) que se tem à disposição. O que poderia ser um obstáculo e limitações que serviriam para “justificar” eventuais falhas se transformou no grande trunfo do Projeto Conto em Cena nesta última temporada.
A economia de elementos cênicos não compromete a apresentação em momento algum. Pelo contrário. Tendo em mente tais fatos, vem à lembrança A Falecida, uma Tragédia Carioca de Nélson Rodrigues, na qual o dramaturgo, em suas rubricas, não coloca em cena nada além de duas cadeiras, um travesseiro e um jornal, embora na história haja de jogo de bilhar, passando por um velório, culminando num apoteótico Fla-Flu no Maracanã. Tiradas as devidas proporções, fica a certeza de que o produto final de um espetáculo não tem, necessariamente, relação direta e de dependência com grandes produções. Obstinação, trabalho árduo, pesquisa e pessoas em sintonias afins fazem a diferença, sempre.

“O diretor! O diretor!”
Formado pela Escola de Artes Dramáticas da Ufba, o ator Geovane Mascarenhas tem em seu currículo atuações em algumas peças em teatros soteropolitanos, assistiu a muitas peças do diretor de teatro baiano Fernando Guerreiro e de “Hacker, meu professor na Ufba, na época. Ele é um autor muito ligado a símbolos. Um autor do qual eu gosto muito é o paulista Gabriel Vilela. O grupo de teatro brasileiro que atualmente está fazendo um trabalho que me atrai bastante e está em consonância com o que eu penso sobre o que é fazer teatro é o Galpão, de Minas Gerais”.
O Grupo Conto em Cena
O grupo Conto em Cena, fruto de uma oficina de teatro do Cuca, capitaneada pelo ator e diretor Geovane Mascarenhas, há dois anos leva contos clássicos de nossa literatura ao palco do Cuca e a cidades vizinhas. Dando início a um trabalho de teatro voltado para o público estudantil, em 2010, o grupo começou a lotar a plateia do Teatro do Cuca com turmas de escolas públicas e particulares, com uma adaptação do conto O Justo – trabalho que eles resolveram apresentar como resultado da oficina de 2009. Com uma resposta positiva por parte do público a O Justo, veio a ideia de encenar outro conto de Nélson Rodrigues, A Noiva da Morte, ainda naquele ano. E assim foi feito.
A Cartomante, o conto da vez, está nos últimos dias da última temporada. Amor, de Clarice Lispector, será o conto de 2012. “A gente sempre está aberto a sugestões do nosso principal público, a escola. Este conto de Clarice surgiu quase que por unanimidade entre professores e estudantes, que interagem bastante conosco depois das apresentações”, disse Geovane.

Serviço

Além de assinar a direção, Geovane também é responsável pela concepção do cenário e luz, e operação de luz. A operação de som fica a cargo de Elidiane Souza. O figurino, que também tem ideias do diretor, é executado pelas minuciosas mãos de Vilma Bahia.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

As meninas do Beco

por Karine Braga


Sábado, dez horas em ponto, sacode a rotina na Praça da Matriz. Pernas se apressam pra cá e pra lá: é hora de cumprir as obrigações do dia, como pagar contas, sacar dinheiro no banco, fazer feira.  Muitos, inclusive, vêm de outras cidades para conferir nosso agitado comércio. Afinal, estamos no mês de dezembro e a maioria, de posse do décimo terceiro salário, sente-se poderosa. Antes, porém, pausa para tomar caldo de cana, água de coco ou aquele sagrado cafezinho. É nessa praça, numa ardente manhã de dezembro que o Folha do Estado encontra sua primeira entrevistada: Shirley*, uma morena de 28 anos.
Inserida num grupo da sociedade que cada vez mais tem crescido entre as mulheres brasileiras, a de chefe de família, Shirley não só assegura sua subsistência (e a de seus três filhos) como já lhe garantiu um pequeno patrimônio, constituído de três casas de aluguel e uma moto. Seu perfil, no entanto, destoa de qualquer padrão social. Shirley é prostituta. Para nossa equipe, ela tornou-se uma espécie de porta-voz de suas colegas: quase todas, muito ciosas de suas imagens, não se dispuseram a dar depoimentos.
Aos vinte anos, quando já tinha uma filha de quatro, “fruto de um casamento que não deu certo”, Shirley começou a trabalhar na praça. Hoje, mais estabelecida financeiramente e com ensino médio concluído, diz não encontrar outras oportunidades. “Nenhuma quer ficar aqui pra sempre. Cada uma veio para se estabilizar”, diz. Apesar dessa confissão, no entanto, não é difícil imaginar que muitas delas ainda estejam por lá, daqui a 5 ou 10 anos.  
“Eu só estou nessa porque tenho que pagar meu aluguel”, diz Juliana*, nossa segunda entrevistada. Ela conta como é difícil lidar com o preconceito, que as confunde com marginais. “Tem gente dizendo que a gente tem que sair daqui, mas quem deve mesmo sair são os ‘sacizeiros’ (gíria usada para designar os usuários de crack). São eles que bagunçam a praça com assaltos e tráfico de drogas. Para Shirley, a presença das garotas no local ainda assume esta função de “organizar” o lugar, garantindo a segurança de quem passa. E acrescenta: “Não é todo mundo que dá pra essa área. Tem que ter talento e disposição, sem contar que existem muitos riscos”. Mas tem uma ponta de diversão nisso, garante Shirley. Afinal, “quem não quer fazer amor e ganhar dinheiro?”, brinca. O programa gira em torno de 70 a 80 reais e os horários são flexíveis.
Bastante descontraída, ela também conta que se torna, não raro, um misto de conselheira matrimonial e ‘analista’ dos seus clientes: “alguns pagam a gente não é nem pra fazer sexo, é só pra ser ouvido. Às vezes têm problemas em casa e as mulheres não sabem ouvir, aí eles vêm pra cá.”
No Beco da Energia o Folha do Estado conversou com Marina*. Com 27 anos e 8 que faz programas, Marina só concluiu a 8ª série e tem dois filhos para criar. Menos faceira, ciente da realidade da própria exploração, é incisiva quando o assunto é o motivo que a trouxe a esse mundo: “É falta de trabalho mesmo. Eles exigem tanta coisa pra trabalhar que hoje tá um pouco difícil”. Marina é um exemplo estatístico dos fatores que levam a esse universo:  baixa escolaridade, falta de qualificação profissional e consequente dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. Muitas vêm do interior para morar nas zonas urbanas periféricas e a maioria tem filhos.
Para garantir dos direitos de quem exerce tal ocupação, foi criada, em 2001, a APROFS (Associação dos Profissionais do Sexo de Feira de Santana), estabelecida no Beco da Energia, o mais antigo ponto do mercado de sexo da cidade. A associação conta com a parceria da Secretaria Municipal de Saúde, visando à realização de ações educativas, cuja principal bandeira é a distribuição de preservativos. Segundo Shirley, a camisinha já é um recurso de trabalho para praticamente todas as meninas, pois “a AIDS está aí e elas, acima de tudo, gostam de si mesmas e têm família. Geralmente, quem não se cuida é quem não tem nada a perder.”
O Folha do Estado tentou entrar em contato, por duas vezes, com Tatiane Sacramento, responsável pela APROFS, mas não obteve êxito.
*Os nomes das entrevistadas foram trocados para preservar suas identidades.

Texto publicado na edição nº, do Folha do Estado, em ..., a pedido de Paulo Rabelo

Museu Regional de Arte

MRA: Das paredes às telas
Texto: Paulo Rabelo
Foto: Filipe Oliveira

 
Por si só o conjunto formado pelos três prédios datados do início do século XX situados na Rua Conselheiro Franco merecem alguns instantes de contemplação. Um oásis em meio ao conjunto arquitetônico que o cerca (reflexo do caráter comercial que a cidade assume mais marcadamente no centro, no raio de alguns quilômetros), as três construções são 3 marcos de resistência da arquitetura eclética feirense, alguns dos poucos exemplares que insistem (felizmente) em sobreviver ao avanço do comércio, ao descaso do poder público e sociedade. Daquela época, nas imediações do que hoje conhecemos como o Centro Universitário de Cultura e Arte, o Cuca, talvez sobrevivam, além da Matriz, claro (pois o antecede), apenas alguns postes de ferro importados (W. Bollman. Baltimore. WD. U.S.A) que podem ser encontrados sob as copas dos oitizeiros plantados há algumas décadas na Praça da Matriz.
No dia 12 de março de 1916 o prédio foi inaugurado como Grupo Escolar J.J. Seabra (GEJJS). Os pavilhões em anexo, Dr. Antônio Muniz (atual Galeria Carlo Barbosa) e Dr. Pedreira Franco (que atualmente se destina a aulas de capoeira, dança e outras atividades) foram inaugurados no dia 18 de agosto de 1918, segundo Carlos Alberto Almeida Mello. Em 1925 foi criado o decreto nº 1.846, que transformaria o GEJJS na Escola Normal de Feira de Santana, a primeira do interior da Bahia; em 1935 passa a ser Escola Normal Rural de Feira de Santana; em 1943 serve de abrigo ao 18º batalhão de Infantaria da 6ª Região Militar (período da 2ª Guerra); em 1949 volta à função educacional, agora com o curso ginasial e o nome Escola Normal; em 1956 acolhe o Instituto de Educação Gastão Guimarães; em 1967 o Seminário de Música de Feira de Santana, que ocupou o prédio da antiga Escola Normal até 1994; em 1970 seria gerado ali o embrião da Uefs, a Faculdade de Educação de Feira de Santana, que funcionou em suas dependências até 1976. No dia 31 de maio daquele ano foi inaugurada a Uefs.
“A Escola jamais chegou a ser completamente abandonada, no sentido de não ser utilizada. O que aconteceu foi que o espaço foi progressivamente sofrendo com o desgaste do tempo e com a falta de manutenção, já que com a transferência das atividades para o Gastão Guimarães, a Escola Normal deixou de ser prioridade na aplicação dos recursos”, explica Aldo Morais, historiador do Cuca.
Ainda segundo o historiador, “em 1991, parte do forro do teto de uma das salas desabou. Por segurança, aquela sala foi isolada e as atividades ali desenvolvidas foram transferidas para o galpão que havia nos fundos da Escola Normal, onde hoje está o teatro de arena”.

A saga do Cuca
No reitorado de Josué da Silva Mello (1991-95), feirenses como o professor Raimundo Gama (responsável pelo envio, no início da década de 1990, de uma lista de bens imóveis de valor histórico para a cidade ao IPAC, pedindo seu tombamento), o artista plástico e arquiteto Juraci Dórea, Mons. Renato Galvão, o então diretor do Museu Casa do Sertão, Franklin Machado, e dezenas de pessoas se mostravam preocupadas com o destino das poucas peças arquitetônicas de Feira que guardavam algum valor histórico, entre elas a antiga Escola Normal.
“Em prol da Uefs, da cidade e da sociedade, de um modo geral”, nas palavras de Franklin, “seria imperdoável não aproveitar as circunstâncias, que eram favoráveis: O presidente do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), então, era um feirense apaixonado pela terra natal, o professor Divaldo da Costa Lima; além disso, desde o reitorado da professora Yara Maria Cunha Pires (1987-91), o Museu Regional de Feira de Santana (o 1º museu de Feira), tinha um convênio com o Instituto para a fotografação de todo o seu acervo”, informa. Ainda segundo ele, “imediatamente”, Divaldo veio a Feira com um arquiteto, também feirense, e começaram os levantamentos das instalações da antiga Escola Normal. Na mesma ocasião, em 1994, Divaldo Lima e o arquiteto visitaram também o painel de Lênio Braga, na Estação Rodoviária, que foi o primeiro bem feirense tombado pelo IPAC, ainda naquele ano.
Nem tudo nesta história foram flores, apesar de Dival da Costa Lima ter sido solícito desde a primeira abordagem e pedido do reitor para que o IPAC restaurasse a antiga escola, ampliasse suas instalações para a Uefs, que teria ali, no centro da cidade, um extensão voltada a diversas manifestações artísticas e culturais. Procurado por Josué Mello, o governador ACM, mesmo sem ter mais restauração a fazer no Pelourinho, a menina de seus olhos, disse que no momento não havia verbas para a reforma da antiga Escola Normal de Feira.

“Ah, é, é?”
Segundo Franklin Maxado, o reitor Josué Mello ameaçou o governador com a venda de parte dos quadros do Museu Regional de Feira de Santana para levantar fundos para a reforma. Como vender parte de um acervo único em todo o Brasil teria repercussão de nível nacional, ACM liberou o restauro e ampliação da Escola Normal, que aconteceu entre 1994 e 95.

Quando o rei do Brasil faz o 1º museu de Feira
Foto: Divulgação
Obra de um dos ingleses Pauline Vincent: Seated figure on Emanoel Square (Figura sentada na Praça Emanoel), sem data. Esmalte sobre ferro, 102 x 102 cm

Quando foi embaixador do Brasil na Inglaterra, de meados a final da década de 1950, Assis Chateaubriand adquirira muitas obras de artistas europeus, que trouxe para o Brasil na bagagem diplomática. E tudo indica que continuaria a adquirir mais obras de origem européia na década seguinte, mesmo depois de sofrer uma trombose dupla que o teria deixado em uma cadeira de rodas e se comunicando através de uma máquina de datilografar adaptada.
Um ano antes de sua morte, em 1967, ele resolve montar três museus no Nordeste. Assim, foi montado um em Recife (PE), outro em Campina Grande, cidade bastante desenvolvida de seu estado natal, a Paraíba, e um aqui em Feira de Santana, para o qual doou 80 obras de arte, segundo Gil Mário, diretor do Museu Regional de Arte.
A doação das obras de Chateaubriand teria sido fruto dos esforços de Odorico Tavares, diretor dos Diários Associados na Bahia e com contato direto com Chatô. Quando Odorico soube que o patrão estava querendo fundar alguns museus no Nordeste, tratou de apresentar o projeto que vinha sendo elaborado, a partir de uma entrevista de Eurico Alves dada a Franklin Maxado para o A Tarde, em 1965, e que mobilizou a nata da intelectualidade feirense no sentido de se criar o primeiro museu da cidade. Assim, no dia 26 de março de 1967 nascia o Museu Regional de Feira de Santana nas instalações que hoje são ocupadas pelo Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira.

O Museu Regional de Feira de Santana abrigaria, além das obras doadas por Assis Chateaubriand, um conjunto de peças que retratavam a vida do sertanejo no seu cotidiano: selas de montaria em couro, vestimenta e chapéus de couro, típicos de vaqueiros. Uma infinidade de objetos ligados à vida e à lida no sertão. Esse acervo iconográfico foi um sonho do poeta e intelectual feirense Eurico Alves, acalentado por outros feirense, e não feirenses, que queriam proteger os símbolos de um modo de vida que estava se perdendo com a inevitável modernização dos espaços urbanos brasileiros, principalmente a partir da década de 1960, e do êxodo rural-urbano.
O MRFS funcionou no prédio que havia sido ocupado pela a administração do curral da feira do gado (onde hoje está localizado o Ginásio Estadual, a Biblioteca Municipal, a quadra defronte do Feira Tênis Clube) até 1995, quando a antiga Escola Normal é entregue, já batizada de Cuca. A parte dos couros foi realocada para o Museu Casa do Sertão e as obras de artes plásticas transferidas para o prédio central do Cuca, cuja reforma respeitara todos os detalhes da velha construção de estilo eclético, “como todas as construções levantadas em Feira no início do século passado”, segundo o diretor do MRA – sigla que substituiria o MRFS, com a mudança de endereço.

Acervo do Museu Regional de Artes
    Foto: Divulgação
“Terra” (1965), de Frans Krajcberg, artista plástico polonês radicado desde 1972 no Sul da Bahia, cuja obra reflete uma constante preocupação com a preservação do meio ambiente

“Há quem diga que o museu, de uma forma geral, é elitizado. O museu nunca foi elitizado”, protesta o diretor do MRA. “Pelo Contrário: O museu é um espaço público em que o governo gasta dinheiro para ter obras de altíssimo nível para que a população, que não pode ter obras de arte em sua casa, possa ter acesso e deleitar daquilo. Se a pessoa não pode ter um Di Cavalcante, um Vicente de Rego Monteiro, um Raimundo de Oliveira, um Caribé ou um Manabu Mabe em sua casa, ela pode ter o prazer de ver obras desses artistas e de tantos outros de valor inquestionável no MRA”.

Do acervo doado por Chateaubriand, destaca-se o conjunto de 30 obras de 28 artistas ingleses emergentes, das décadas de 1950 e 1960. Tais obras têm o reconhecimento de críticos de todo o mundo e constituem “única coleção de artistas modernos ingleses em um museu brasileiro”, explica o diretor, completando, à guisa de curiosidade, que “a maioria deles eram filhos de alemães judeus fugidos durante a 2ª Grande Guerra”.
Gil Mário comunga com ideia de que cultura tem que ser um hobie e não uma obrigação. “Tem que ser algo prazeroso. A pessoa deve ir a um museu não somente para fazer um trabalho de escola, mas para sentir prazer com a contemplação das obras que ali estão expostas. É como ler um livro”, compara.
Além daquela que ficou conhecida como a “coleção inglesa do MRA”, o museu também possui em seu acervo obras de participantes da semana de 22, como Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti, de artistas pós-modernistas e de obras de pessoas de renome nacional e internacional, como Aldemir Martins, Francisco Stockinger, Raimundo de Oliveira, Carlo Barbosa, Antônio Brasileiro e Juraci Dórea (os quatro últimos feirenses), além de Manabu Mabe, Caribé, Orlando Theruz, Jenner Augusto e tantos outros.

RECESSO, SERVIÇOS E EXPOSIÇÕES
Excepcionalmente este ano, a reabertura do MRA acontecerá em março. “Tivemos que fazer a descupinização de algumas obras e outros serviços de manutenção que fazem parte do calendário anual do museu. O atraso de abertura neste ano se deve ao fato de que esses serviços tiveram que ser mais rigorosos”, explica Gil Mário.
O prédio que abriga o MRA tem capacidade para a exposição de 57 obras, entre esculturas e telas. O prédio é composto por duas salas devidamente climatizadas e iluminadas e um hall, onde ficam expostas as esculturas. Normalmente, uma das salas é ocupada pela Coleção dos Ingleses. “Como são 30 obras, expomos 15 a cada semestre”. Elas deixam de ser expostas, às vezes, em ocasiões em que o Museu faz parceria (com permuta de obras) com outros museus e galerias de arte.
“A nossa última parceria foi com a Galeria Paulo Darzé, de Salvador, que nos emprestou 55 obras de Caetano Dias, entre fotos, instalações, óleo e acrílico”, finalizou.

Publicado na edição nº 3.430, do Folha do Estado, em 27 de fevereiro de 2011



domingo, 23 de outubro de 2011

Unindo as águas do Mississipi com as dos São Francisco

Texto: Karine Braga
Fotos: Guilherme Andriani



Quando novas bandas vão se formando, um desafio a elas se impõe: apresentar um trabalho autoral, correndo maiores riscos de rejeição ou apostar nos chamados “covers”, garantia de maior receptividade, cuja tendência, entretanto, é desaparecer tão logo o público se enfastie? Sendo difícil apostar numa ou noutra via, muitas vezes, os músicos optam por uma espécie de trabalho mesclado, em que um ou outro trabalho autoral vem à tona.
Pois medo de rejeição, definitivamente, não foi marca do início da trajetória do Clube de Patifes. Há 12 anos, a banda tem apostado no blues-rock, justamente em Feira de Santana, esta cidade onde se come “pirão com carne assada de volta do curral”, como disse o poeta Eurico Alves. Nascido entre estudantes da UEFS, o grupo aceitou (e superou) o desafio de solidificar um trabalho autoral e contribuiu para desfazer a concepção purista de que só se canta blues em inglês.
A cada vez que sobem ao palco, Pablício Pablues (vocal e gaita), Paulo de Tarso (bateria), Jo Capone (baixo) e Stephen Ulrich (guitarra) conquistam novos fãs. Também é certo que haja um público fiel, a cantarolar as letras eivadas de certa influência bukowskiana, nas quais se destacam a bebida (e os porres) e as conquistas amoroso-sexuais (e, algumas vezes, as decepções delas decorrentes) de quem vive na noite. Exemplos são as canções “Barfly”, “Fele-me” e “Noite em claro”, ícones do primeiro álbum, “Do palco ao balcão” (2001), considerado, pela crítica especializada, um dos melhores discos de blues do Brasil. Foram vendidas 3 mil cópias, um número significativo se levarmos em conta dois fatores: a disponibilidade para download na Internet e o fato de ser uma produção independente, sem o selo das grandes gravadoras.
O segundo álbum demorou a sair. Percalços como mudanças de formação no grupo contribuíram para a delonga. Mas valeu a pena esperar por “Com um pouco mais de alma” (2009), que traz 11 músicas. Tem a participação do cordelista Bule-Bule, na vinheta “Bule Bule Trazendo a verdade”, que introduz “Mulher de repente” e exemplifica a proposta de “unir as águas do Mississipi com as águas do São Francisco”, ou seja, valorizar, a um só tempo, tanto a batida do blues e do rock’n’roll como a herança nordestina. Tantas músicas se destacam nesse sólido trabalho que destacar uma ou outra me faria injusta.
Muitos momentos significativos marcam os 12 anos do Clube. O primeiro show, numa festa do curso de Administração, em 11 de novembro de 1998. A estréia para a cidade, no CUCA, em 1999. Shows na UEFS (nas antigas Calouradas) e nos bares da cidade, como Jeca Total, Bavária e Boca do Caranguejo (os dois últimos, já extintos). Mais tarde, apresentações em Salvador, no antológico bar Café Callypso, no Rio Vermelho.
Nos últimos anos, os patifes têm ultrapassado as fronteiras da Bahia. Participaram de festivais importantes, como o Panela Rock, em Fortaleza (CE) e o Usina da Cultura, em Mossoró (RN). Sergipe e Minas Gerais também fizeram parte dessa turnê. Com “olhos abertos, mente aberta”, eles pretendem alargar ainda mais os horizontes em 2011.
Haveria surpresa nisso? Penso que não. Num breve encontro com Joilson Santos, o Jo Capone, de pouco mais de quarenta minutos, fica fácil perceber que, além de genuinamente talentosos, esses rapazes são daqueles que têm, cravada nos olhos, a sede do infinito. Audaciosos, tornaram-se, nos últimos três anos, peças fundamentais no agito da cena rocker baiana, sobretudo do interior. Idealizaram a Alcatéia Produções que, integrada ao Capivara Coletivo e ao Feira Coletivo Cultural, é responsável pelo projeto “Noites baianas”. Concentrado em dois dias, o evento, realizado em Feira de Santana e Camaçari, contou com 10 atrações, tanto do interior como da capital. É a boa música alternativa se fortalecendo na Bahia.


Com o Feira Coletivo Cultural, o grupo tem muitos projetos para 2011
                                        



O Feira Coletivo Cultural, que está completando um ano, é um núcleo organizado que integra múltiplas linguagens e visa trazer novas perspectivas à cultura feirense, através de atividades diversas. Propõe a organização de atividades para a formação de platéias, ou seja, atividades que estimulem o público a criar o hábito de frequentar certos ambiente culturais, fortalecendo a sustentabilidade no mercado cultural da região.
“O problema de Feira de Santana” – diagnostica Joilson Santos – “é que os espaços não são democráticos”. Ele se refere à carência de divulgação e solidificação do circuito música alternativa. Para mudar esse cenário, surgiu o Feira Noise Festival, que aconteceu, em suas duas edições, no Centro de Cultura Amélio Amorim.
 O evento foi concebido para busca reforçar os alicerces da música contemporânea local e regional e toda a diversidade artística no interior baiano, promovendo a integração entre seus agentes produtivos, sejam eles artistas, produtores, distribuidores, jornalistas, etc., bem como apresentar um panorama da produção musical que vem sendo produzida, reunindo desde o jazz, blues, música eletrônica, rock e a música popular da região. Único festival de arte integrada do interior baiano, está conectado com o Circuito Fora do Eixo (movimento cultural que reúne produtores, artistas e jornalistas de mais de 40 coletivos diferentes em todo o Brasil).
Mesmo tendo reunido reuniu diversas atrações do Nordeste do País, a primeira edição, realizada em julho de 2009, teve uma aparição tímida. Em outubro de 2010, a segunda edição, maior, mais diversa, com atrações de todo o país, reuniu de 600 pessoas durante os três dias – embora, como afirma Joilson, esse número poderia ser bem mais expressivo se houvesse mais parceiros na produção, que ficou por conta apenas do Feira Coletivo Cultural.
Além de apostar nos artistas que privilegiam o trabalho artístico criativo e de qualidade em detrimento dos formatos consagrados pela indústria fonográfica, o Feira Noise ainda discutiu a produção cultural em Feira de Santana, as políticas públicas para a Cultura, com debates, palestras e oficinas que também integraram a programação do Festival.
Muitas outras noites de boa música alternativa virão em 2011, por iniciativa do Feira Coletivo Cultural. O objetivo é que os eventos ocorram em frequência quinzenal, a fim de inserir a cidade no mapa das turnês que a rede Fora do Eixo vem viabilizando desde 2009. Com o apoio, procura-se fortalecer, incentivar e dar sustentabilidade à cena independente, algo que seria impraticável se não houvesse intensa comunicação entre os diversos coletivos do país, no intuito de construir uma cultura de auxílio mútuo.


Texto publicado no Folha do Estado - edição 3.358, 5 de dezembro de 2010, a pedido de Paulo Rabelo