sábado, 22 de outubro de 2011

Pequenas e grandes histórias de travestis em Feira


Texto: Paulo Rabelo
Fotos: Patrícia Martins 


“Sábado e domingo são os dias em que não faço programas, só amor”, Talita, 36



À noite, em esquinas próximas a avenidas famosas pelo comércio do sexo, sob focos de luz fraca de alguns postes, elas se perfilam e exibem suas silhuetas femininas esculpidas através da ingestão de hormônios durante anos e/ou silicone industrial introduzido perigosamente pelas mãos de alguma travesti “bombadeira”.
Bruna, 20 anos recém-completados, que exibia uma maquiagem muito bem feita e cabelos naturais longos e pretos, foi a primeira a ser entrevistada naquela segunda semana de agosto. A fotógrafa não foi autorizada a registrar a sua imagem, pois a travesti teme que a mãe (que pensa que ela trabalha num salão, como cabeleireira), a reconheça e saiba que ela se prostitui.
Bruna conta que começou a "se travestir mesmo, usando roupas mais femininas”, há pouco mais de cinco meses, logo depois de sair de sua cidade de origem, a algumas dezenas de quilômetros de Feira de Santana. “Antes eu já vestia roupas de mulher e usava maquiagem, mas misturava às roupas algumas peças do guarda-roupa masculino e a maquiagem era mais discreta, era rímel, pó compacto e um batom discreto”, diz.
Prostituindo-se há pouco mais de dois meses, sempre na mesma esquina de uma rua do Centro da cidade, ela diz faturar o suficiente para o aluguel, suas despesas pessoais, roupas e maquiagem. “Faço programas todos os dias, mas é no final de semana que consigo faturar mais”.
Sobre os perigos que corre à noite e sozinha, tendo que entrar em mais de um veículo por noite, a iniciante diz que a única coisa que lhe aconteceu em seus dois meses na noite foi um assalto. “Um rapaz parou de bicicleta, mostrou uma faca e me mandou passar tudo o que eu tinha. Entreguei minha bolsa e ele foi-se embora”, conta.

Deixando os programas aos poucos
                                       
Talita, 36 anos, que se traveste há oito anos, conta-nos que desde que optou vestir-se como mulher tem vivido de programas. Feirense do bairro Queimadinha, onde se criou e vive até hoje, ela mora vizinha de seus oito irmãos. “Todos os meus irmãos são nota 10, nunca demonstraram qualquer tipo de preconceito contra mim”, diz.
Alta, magra e cabelos loiros longos, Talita tem formas enxutas, menos arredondadas, ganhas à custa de hormônios. “Nunca apliquei silicone, nem pretendo”, disse. Perguntada se faria a cirurgia de mudança de sexo, foi peremptória: “Nunca! Primeiro porque estou satisfeita com o corpo que tenho e, segundo, meus clientes não gostariam que eu tirasse seu brinquedo favorito”.
Talita conta que está concluindo um curso de corte e costura e que pretende fazer outros cursos, para ocupar a mente durante o dia e poder mudar, aos poucos, a sua fonte de renda. “Vai chegando a idade e eu sei que um dia não vou mais querer fazer programas”.
Assumidamente ativa em seus programas, como a maioria de suas colegas, Talita conta que cobra de 50 a 150 reais. “Depende do que eu vou fazer, pois às vezes eles (os clientes) querem que eu satisfaça alguns fetiches. Quanto mais estranho o fetiche, mais alto o cachê”.
Bom papo, Talita também diz que nunca usou qualquer tipo de droga, embora a maioria de seus clientes use, e que está com o mesmo namorado há anos. “A gente tentou morar junto, mas não deu certo. Está melhor assim, cada um em seu canto. Mas a gente passa o final de semana sempre juntos, na minha casa ou na dele. Sábado e domingo são os dias em que não faço programas. Só amor", declara com firmeza.

O preço da beleza



“É o preço da beleza, meu amor! Silicone é sorte, não são todas que se dão, não”, diz Roberta


Dizendo ter trinta e alguma coisa ao se referir à própria idade, Roberta é mais simples no vestuário e no modo de falar que as outras duas entrevistadas da noite. “Já trabalhei de carteira assinada, numa fábrica de doces que já fechou. Mas, como é difícil darem emprego a um gay que está se transformando - pior ainda é a situação dauqle que, como eu já se transfomaram-, pois as pessoas ainda são muito preconceituosas, tive que levar minha vida, né?”. Há sete anos na prostituição, ela diz morar vizinha à mãe e os irmãos e que a relação familiar é “normal. Ninguém se mete na minha vida e eu não me meto na vida de ninguém”.
São muitos os perigos que a noite guarda para Roberta e suas colegas de profissão. “Chega um carro, ele para, geralmente me perguntam qual meu dote (tamanho do pênis) e eu entro no carro. Uma vez lá dentro não sei o que vai acontecer comigo”, revela, contando que por algumas vezes já teve uma arma apontada para a cabeça, acompanhada sempre com ordem para descer do veículo depois do programa. “Isso sempre acontece com todas as travestis que eu conheço: a gente sai com um cliente e no final eles não pagam. Já fui deixada num matagal próximo a Salvador”, lembra.
Segundo Roberta, o dinheiro que ganha dá para sobreviver. “Isso porque moro no terreno nos fundos da casa de minha mãe. Mas, se tivesse que pagar aluguel, talvez não desse”. Os seus serviços custam de 40 a 50 reais, “mas podem chegar a mais, dependendo do cliente e do modelo do carro”, conta, bem humorada.
“Para me transformar numa travesti eu me inspirei em outras travestis que eu via aqui em Feira. Aí comecei a tomar hormônios e, depois que consegui guardar um dinheirinho, coloquei meus seios e minhas curvas”, disse, referindo-se aos 250 mililitros de silicone de veículo injetados em cada peito, dois litros distribuídos pelos quadris e mais um litro aplicado em cada glúteo. Quando perguntada se tem consciência dos riscos que corre, responde de imediato: “É o preço da beleza, meu amor! Silicone é sorte, não são todas que se dão, não”. O preço desses adendos que deram formas femininas a seu corpo foi mais de três mil reais. “Elas (as bombadeiras) costumam cobrar mil reais pra cada parte do corpo. Meus peitos, por exemplo, custaram mil, e as outras partes também. Mas temos outras despesas, como remédios, transporte e às vezes temos que pagar para alguém tomar conta da gente durante o resguardo”.
O silicone usado pra moldar o corpo de Roberta e tantas outras travestis, de acordo com seus sonhos e suas possibilidades, não tem indicação médica. Por ser líquida, a substância pode contaminar a corrente sanguínea e trazer danos irreversíveis, como feridas, necroses e tumores que requerem a retirada parcial ou total do tecido. Em casos extremos, a aplicação desse tipo de silicone pode levar a travesti à morte.

VIOLÊNCIA E OMISSÃO: 2 VERSÕES ASSASSINAS DA HOMOFOBIA

Não bastasse o silicone industrial injetados em seus corpos e clientes violentos e caloteiros, as travestis que fazem trottoir pelas noites feirenses correm outros riscos de morte. Roberta se lembra de sua amiga Paulina, que em 2008 foi arrastada por 50 metros por um veículo de dados ignorados, sofreu vários traumas e morreu quatro dias depois do atentado. Mesmo queixando-se de dores por todo o corpo, os médicos que a atenderam no Hospital Geral Clériston Andrade (HGCA) a liberaram depois de um primeiro atendimento, rápido e superficial.
Rafael Carvalho, presidente fundador do Glich, que em texto publicado em março de 2010 no número 1 da Transa Revista, intitulado “Homofobia”, fez um breve levantamento dos assassinatos de travestis em Feira na primeira década desse século, também cita as mortes das travestis Roberta e Cristina, que “foram abatidas a tiros em plena Avenida Getúlio Vargas, em 2003”. Porém, estes dados são apenas a ponta de um iceberg mergulhado num mar de sangue derramado pelo ódio homofóbico.
Rafael contou-nos que na segunda semana de agosto uma travesti apareceu na sede do Glich para se queixar de um motorista de ônibus que, pela segunda vez, jogou o fundo do veículo contra ela. “No dia em que ela esteve aqui para nos contar, uma de suas pernas tinha um hematoma enorme, porque bateu em um dos lixeiros fixos do Terminal Central, fugindo do ônibus”.
Esse tipo de violência, velada, que pode soar como brincadeira para alguns, e as agressões verbais, são as mais recorrentes contra as travestis de Feira de Santana. “Além desses tipos de agressões há a violência física que não culmina em morte e os assassinatos, que são os casos extremos”.

Publicado no Folha do Estado, edição nº 3.583, no dia da X Parada Gay de Feira, 28 de agosto de 2011

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