segunda-feira, 24 de outubro de 2011

As meninas do Beco

por Karine Braga


Sábado, dez horas em ponto, sacode a rotina na Praça da Matriz. Pernas se apressam pra cá e pra lá: é hora de cumprir as obrigações do dia, como pagar contas, sacar dinheiro no banco, fazer feira.  Muitos, inclusive, vêm de outras cidades para conferir nosso agitado comércio. Afinal, estamos no mês de dezembro e a maioria, de posse do décimo terceiro salário, sente-se poderosa. Antes, porém, pausa para tomar caldo de cana, água de coco ou aquele sagrado cafezinho. É nessa praça, numa ardente manhã de dezembro que o Folha do Estado encontra sua primeira entrevistada: Shirley*, uma morena de 28 anos.
Inserida num grupo da sociedade que cada vez mais tem crescido entre as mulheres brasileiras, a de chefe de família, Shirley não só assegura sua subsistência (e a de seus três filhos) como já lhe garantiu um pequeno patrimônio, constituído de três casas de aluguel e uma moto. Seu perfil, no entanto, destoa de qualquer padrão social. Shirley é prostituta. Para nossa equipe, ela tornou-se uma espécie de porta-voz de suas colegas: quase todas, muito ciosas de suas imagens, não se dispuseram a dar depoimentos.
Aos vinte anos, quando já tinha uma filha de quatro, “fruto de um casamento que não deu certo”, Shirley começou a trabalhar na praça. Hoje, mais estabelecida financeiramente e com ensino médio concluído, diz não encontrar outras oportunidades. “Nenhuma quer ficar aqui pra sempre. Cada uma veio para se estabilizar”, diz. Apesar dessa confissão, no entanto, não é difícil imaginar que muitas delas ainda estejam por lá, daqui a 5 ou 10 anos.  
“Eu só estou nessa porque tenho que pagar meu aluguel”, diz Juliana*, nossa segunda entrevistada. Ela conta como é difícil lidar com o preconceito, que as confunde com marginais. “Tem gente dizendo que a gente tem que sair daqui, mas quem deve mesmo sair são os ‘sacizeiros’ (gíria usada para designar os usuários de crack). São eles que bagunçam a praça com assaltos e tráfico de drogas. Para Shirley, a presença das garotas no local ainda assume esta função de “organizar” o lugar, garantindo a segurança de quem passa. E acrescenta: “Não é todo mundo que dá pra essa área. Tem que ter talento e disposição, sem contar que existem muitos riscos”. Mas tem uma ponta de diversão nisso, garante Shirley. Afinal, “quem não quer fazer amor e ganhar dinheiro?”, brinca. O programa gira em torno de 70 a 80 reais e os horários são flexíveis.
Bastante descontraída, ela também conta que se torna, não raro, um misto de conselheira matrimonial e ‘analista’ dos seus clientes: “alguns pagam a gente não é nem pra fazer sexo, é só pra ser ouvido. Às vezes têm problemas em casa e as mulheres não sabem ouvir, aí eles vêm pra cá.”
No Beco da Energia o Folha do Estado conversou com Marina*. Com 27 anos e 8 que faz programas, Marina só concluiu a 8ª série e tem dois filhos para criar. Menos faceira, ciente da realidade da própria exploração, é incisiva quando o assunto é o motivo que a trouxe a esse mundo: “É falta de trabalho mesmo. Eles exigem tanta coisa pra trabalhar que hoje tá um pouco difícil”. Marina é um exemplo estatístico dos fatores que levam a esse universo:  baixa escolaridade, falta de qualificação profissional e consequente dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. Muitas vêm do interior para morar nas zonas urbanas periféricas e a maioria tem filhos.
Para garantir dos direitos de quem exerce tal ocupação, foi criada, em 2001, a APROFS (Associação dos Profissionais do Sexo de Feira de Santana), estabelecida no Beco da Energia, o mais antigo ponto do mercado de sexo da cidade. A associação conta com a parceria da Secretaria Municipal de Saúde, visando à realização de ações educativas, cuja principal bandeira é a distribuição de preservativos. Segundo Shirley, a camisinha já é um recurso de trabalho para praticamente todas as meninas, pois “a AIDS está aí e elas, acima de tudo, gostam de si mesmas e têm família. Geralmente, quem não se cuida é quem não tem nada a perder.”
O Folha do Estado tentou entrar em contato, por duas vezes, com Tatiane Sacramento, responsável pela APROFS, mas não obteve êxito.
*Os nomes das entrevistadas foram trocados para preservar suas identidades.

Texto publicado na edição nº, do Folha do Estado, em ..., a pedido de Paulo Rabelo

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