domingo, 30 de outubro de 2011

"A forma de uma cidade muda mais depressa, ai de nós, que o coração de um mortal" (C. Baudelaire)

    Foto: Edson Machado
 Em questão de antiguidade e de estilo arquitetônico a gente não tem muito que mostrar, esta é que é a verdade, diz Franklin Maxado


Surgida nas primeiras décadas do século 18, Sant'Anna dos Olhos d'Água da Feira se desenvolveu em torno de uma capela em homenagem a Senhora Sant'Ana e São Domingos, erigida pelo casal de portugueses Domingos Barbosa de Araújo e Ana Brandão, em 1732.
O local onde foi erguida a capela era um ponto de intersecção entre Cachoeira (maior vila da província da Bahia) e São José das Itapororocas (hoje distrito de Maria Quitéria), que à época era a entrada para o sertão e para onde convergiam parte das mercadorias desembarcadas no porto de Cachoeira, que por sua vez recebia as boiadas vindas do sertão.
Com a demanda de mercadorias do sertão para o litoral, e vice-versa, os comerciantes de gado, açougueiros, compradores de boiadas e mercadores de diversos outros produtos saíam de Cachoeira para receber e ‘olhar’ as boiadas antes que elas chegassem àquela vila, a fim de comprar mais barato e escolherem os melhores bois. “Por outro lado, os fazendeiros do sertão não precisavam ir até Cachoeira para venderem suas boiadas e comprarem produtos que eram comercializados naquela vila do Recôncavo, como ferramentas agrícolas, pratos, talheres, candeeiros e uma infinidade de produtos que desembarcavam em seu porto”, explica Franklin Maxado.
O comércio criado em torno da capela de Sant’Anna, a Antiga Feira do Gado toma vulto entre o final do século 18 e início do século 19, o que fez com que muitos comerciantes e fazendeiros começassem a estabelecer moradias no Arraial de Sant’Anna.
As construções que foram erguidas naquela época (das quais resta quase nada), não eram tão marcantes como as de estilo barroco que já haviam sido levantadas há algum tempo em Cachoeira. “As primeiras construções de Feira de Santana eram ‘arremedos’ de diversos estilos, sem grandes pretensões arquitetônicas”, diz o cordelista, citando de memória os naturalistas alemães Von Spix e Von Martius, que visitaram a vila de Sant’Anna em 1819: “Na época, eles escreveram que o lugar não passava de um simples vilarejo, um arruadozinho de casas”. O que isso quer dizer? “Em questão de antiguidade e de estilo arquitetônico a gente não tem muito que mostrar, esta é que é a verdade”, diz Franklin.
São poucos os marcos arquitetônicos de alguns períodos de Feira de Santana, que é apenas mais uma entre tantas outras cidades brasileiras que se consomem - com ou "sem" aspas - enquanto progridem.

 Foto: Filipe Oliveira

A segunda construção representativa da arquitetura feirense que sobrevive é o sobrado de João Pedreira, construído em frente à praça que leva o mesmo nome, em frente à igreja Senhor dos Passos. Resumo de uma longa história: João pedreira, um dos homens mais ricos de Feira na virada do século 19 para o século 20, construiu a praça que leva seu nome e muitas casas de aluguel próximas ao casarão, o único sobrevivente da época, ainda em bom estado de conservação e que mantém a fachada da época, embora com algumas intervenções modernas, e atualmente é mais conhecido como o ponto do Bobs, entre a Senhor dos Passos e a Getúlio Vargas.
O valor histórico da construção está no fato de ela ter acolhido a primeira Intendência de Feira (órgão de administração pública equivalente, hoje, à prefeitura); ter sido a primeira Câmara de vereadores, quando foi instaurada a Vila de Feira de Santana, já desmembrada de Cachoeira. O prédio também serviu de cadeia, agência dos Correios, biblioteca pública, sede da Filarmônica Euterpe, sede de uma sociedade de artistas (Sociedade de Cultura Artística de Feira de Santana) e, também acolheu o escritório de advocacia de José Falcão e Chico Pinto, importantes vultos políticos da história da cidade.

Uma honorável ruína
 
    Vista do interior do Palácio do Menor

A Santa Casa de Misericórdia (mais conhecida atualmente como o Palácio do Menor). Sua construção teve colaboração do imperador Dom Pedro II, que doou dois contos de réis na ocasião de sua passagem por aqui, em 1859, e foi inaugurada em 25/03/1865.
Sob tutela do SESC, o prédio nada mais tem, em seu interior, que uns restos de madeira de lei cobertos há anos por uma hera que se revigora a cada temporada de chuvas e paredes laterais sustentadas por vigorosas colunas. Tudo isso  talvez aliado a um bom óleo de baleia. Há um muro belíssimo, com colunas e gradil de metal.. Mas, até quando essas coisas ainda serão recuparáveis de fato? Que soluções encontrará o órgão responsável pela intervenção?
Desde 2008 fala-se, na imprensa, na sua restauração - termo que se torna cada vez mais contestável, neste contexto, com o passar do tempo. Restaurante popular e teatro estão entre as futuras atribuições do espaço, que é mais que apenas o prédio em si. Quem o conhece sabe que dali se tem uma bela vista.

        Uma cidade que se devora


             Foto: Patrícia Martins
  Sem bairrismo, diz o arquiteto Juraci Dórea, as pessoas não se preocupam mais em preservar a memória, não pensam mais em preservar a arquitetura, nem pensam em preservar a cidade

Feira de Santana passa por um processo que acompanha todas as cidades brasileiras, de um modo geral. Ela não é um caso isolado. O ritmo de perda de identidade em Feira é muito mais tolerável. Isto talvez seja pelo fato de ela ser uma cidade cosmopolita, ou seja, por estar situada num entroncamento rodoviário ela atrai pessoas de vários pontos. Esta é uma característica que fez parte da própria formação da cidade, que cresceu em função disso.
Para o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea, os feirenses não têm mais uma referência em relação à cidade. “Uma característica típica das cidades do interior, o ‘bairrismo’, já não existe mais em Feira. Então, as pessoas não se preocupam mais em preservar a memória, não pensam mais em preservar a arquitetura, nem pensam em preservar a cidade. Essa mudança na arquitetura e na paisagem da cidade pode ser percebido num ritmo intenso, principalmente a partir dos anos 1970, através de uma série de elementos que contribuíram com a descaracterização do patrimônio arquitetônico”.
A primeira dessas transformações, e a mais grave, segundo Juraci, foi a mudança da feira livre, que era a principal referência identitária de Feira de Santana. Segundo ele, com a sua transferência, a cidade perdeu o elemento essencial da sua formação e de sua história.
A feira livre ocupava cerca de 8 quilômetros quadrados, nos quais trabalhavam cerca de seis mil feirantes das cidade e de diversos municípios da região. Esse aglomerado de gente, barracas e o trânsito que começava a sua intensificação naquela década, provocava reações variadas. Uns contra e outros a favor da transferência da feira para um lugar específico. Venceu o segundo grupo, na carona da industrialização que começava em Feira de Santana, com a implantação do Centro Industrial Subaé, o crescimento populacional que se direcionava para o centro urbano da cidade ao longo da década de 70. A mudança da feira livre para o Centro de Abastecimento ocorreu mesmo em 1977, embora o projeto tenha sido elaborado em 1966 e as obras tenham começado apenas um ano antes de sua inauguração.
Juraci também evoca como perda identitária alguns elementos que também foram extintos, ou estão em vias de, que valem registro. Uma: "A antiga feira do gado, ao redor da qual nasceu e cresceu Feira de Santana, é uma das principais referências histórica e turística da cidade. O local também serviu de cenário para algumas das mais tocantes cenas de um dos mais importantes filmes já produzidos no Brasil, entre eles Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha".

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