domingo, 23 de outubro de 2011

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire

Texto: Marcio Junqueira
Fotos: Dolores Rodrigues



Numa tarde fria de fins de junho fui encontrar Seu Zito em seu ateliê-marcenaria, na rua...... Nos conhecemos há uns 6 ou 7 anos e sempre destaquei o seu trabalho dentro do panorama que eu chamo de “geração 00 das artes feirense”. A geração que apareceu nesta ultima década e que tem nomes e propostas muito diferentes. Em minhas listinhas particulares penso nos seguintes nomes: Gabriel Ferreira (com pintura-desenho baseado no corpo afro-brasileiro, com especial atenção a capoeira); Leide Velame (com instalações, objetos e performances sempre irreverentes) ; Denilson Santana, vulgo Coruja (com pinturas, objetos e uma produção teórica das mais loucas); Mytisuyana Matsumo (trabalhando com fotografias raspadas e dança); Karomilla Marco (com objetos e fotos); Quito di Souza (que usa camisetas como suporte para poemas visuais pops), Vitor Venas (com um trabalho multimídia e pedagógico dos mais interessantes) ; Aline Costa ( sobretudo com pinturas chapadas); Carol Barreto (que, para além do seu trabalho com moda, tem uma produção visual instigante e bem informada, apesar de oculta) e eu mesmo (com meu trabalho lírico).

Em comum a faixa etária que gravita em torno dos 30, certo perfil universitário, o trânsito por diversas linguagens (sempre com apelo pop),  o fato de não serem feirenses de nascimento (em sua maioria) e um imaginário predominantemente urbano. Seu Zito é quem mais difere desse perfil. Um dos meus projetos, sempre adiados, era fazer um inventário dessa nova produção, contrapondo esse imaginário à mitologia rural da cidade construída principalmente através da obra de Juraci Dórea. O nome da exposição seria “Quem tem medo de Juraci Dórea?”, e acredito que faria bem tanto aos novíssimos quanto ao trabalho de Juraci, que nunca teve o reconhecimento crítico que lhe é devido.             

            Seu Zito me recebe cercado de telas, pincéis, tubos de tinta, cola, lixadeira, serras, tupias, toras e lindas peças de madeira que produz há mais de quarenta anos. Enquanto meu olho se perde entre formas retorcidas de madeira e pequenas caixas coloridas, Seu Zito, com voz tranquila e cheio de humor, vai me contando sua historia. Nasceu na pequenina cidade de Heliópolis (SE), onde vivia do biscate de passarinhos, carros de barro, balas de badogue e laranjas (na porta do cinema) . Chegou a Feira de Santana aos 16 anos, a caminho de São Paulo, refazendo o itinerário do seu irmão mais velho. Em sua primeira tarde na cidade viu um serralheiro trabalhando sozinho e se ofereceu para o cargo de ajudante. Naquele mesmo dia fez uma cama, a primeira, a sua. Quatro anos depois abriria a sua marcenaria, a mesma onde me recebe.
Um artista que nasceu maduro


O primeiro quadro só veio em 2000, aos 58 anos, por conta do conserto de um guarda-roupa. A peça, muito antiga, apresentava umas das laterais tão estragadas que resolveu lhe aplicar um curativo: uma mulher moldada em massa acrílica e pintada em tons agudos. Antes disso nunca tinha entrado em um museu. Que se lembre, só tinha visto uma exposição, alguma coisa sobre Lampião e Maria Bonita. Mas não chegou a mobilizá-lo. O desejo de pintar era antigo, mas pintura, artes plásticas, a própria palavra arte, lhe parecia algo tão rarefeito. Tão distante dos guarda-roupas, armários e penteadeiras que lhe cercavam no seu dia-dia de marceneiro.

Fora um elogio do escritor Juarez Aires, seu antigo amigo e cliente, as coisas continuariam rarefeitas, não fosse seu encontro com K. Maia. Foi K.Maia que, vendo uma das suas pinturas, descobriu alguma semelhança com o trabalho de Herivelton Figueredo e resolveu apresentá-los. Entrou no circuito. Desde então foi um sem numero de salões regionais, grupos e coletivos. Primeiro o PRÓ-ARC (com coordenação de Herivelton Figueredo e participação de Leide Vellame, Bena Loyola, Denilton e Seu Manuel de Eça) durante um ano e meio. Depois, uma breve passagem pelo GEMA (de Maristela Ribeiro). Finalmente o 4 LINHAS, que fundou aos lado de K.Maia, Ronaldo e Agnaldo. Seu Zito tem pressa.          

Começa a pintar por volta de seis e meia da tarde. Finda as obrigações do marceneiro se inaugura o pintor. Pinta geralmente até nove da noite. Antes das dez já está dormindo. Acorda sempre às cinco da manhã. Na ultima quinta-feira do mês (de 3 a 5 da tarde) assiste às sessões da Academia de Letras. Não gosta de musica e lê pouco. Aos domingos frequenta a Igreja Batista Regular, da qual é membro há quarenta anos. Não acredita que exista relação entre sua fé e sua pintura.

Enquanto falamos sobre a precariedade do mercado de arte em Feira de Santana (dominada por quadros feitos para combinar com sofás) e a necessidade de solidariedade entre os artistas, Seu Zito me conduz a uma espécie de museu particular. Uma sala de aproximadamente 5x 3,5 m , com as paredes forradas de pinturas. Soldados, espirais, folhas, conchas, casas, nuvens, manchas, garotos, senhores e uma infinidade de formas inomináveis onde meus olhos se perdem. Tudo em cores quentes. Nos cantos da sala mais telas se acumulam. Futuco algumas, faço perguntas e mais historias vão brotando. Exposições em Viena, Nova York, Roma, Londres e nas Ilhas Canárias. Projetos de oficinas na zona rural, uma exposição em Tobias Barreto , curadorias... Muitos projetos.

Quando deixo o ateliê de Seu Zito uns últimos raios de sol estertoram para os lados do Tomba. A garoa fina intensifica certa nostalgia de fim de tarde. Um poema de Jorge Luis Borges me obseda. Um poema chamado “Os justos”, em que Borges retoma o episodio bíblico (Gênesis, 18) de quando Deus queria destruir Sodoma. Abrão intercede pela cidade dizendo que se houvesse cinquenta justos na cidade eles não poderiam pagar pelos injustos. Deus aceita o trato e admite não destruir a cidade se ali encontrar cinquenta justos. Abrão, depois, fala em quarenta e cinco, depois quarenta, trinta e cinco, trinta, vinte e cinco... até que fica combinado que, se houvesse ali dez homens justos, a cidade seria salva. O poema de Borges é uma inusitada lista dos possíveis salvadores da cidade. A caminho do ônibus vou lembrando os versos: Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire. O que agradece que na terra haja música. O que descobre com prazer uma etimologia. Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez. O ceramista que premedita uma cor e uma forma. O tipógrafo que compõe bem essa página que talvez não lhe agrade. Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. O que acaricia um animal adormecido. O que significa ou quer significar um mal que lhe fizeram. O que agradece que na terra haja Stverson. O que prefere que os outros tenham razão. Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

Texto publicado na Página 3 do Folha do Estado - edição nº 3346, 21 de novembro de 2010, a pedido de Paulo Rabelo. O texto, com o título original, O Justo, também foi publicado no blog da Transa Revista (http://transarevista.blogspot.com/2010/11/por-marcio-junqueira-foto-dolores.html)
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário