domingo, 23 de outubro de 2011

Unindo as águas do Mississipi com as dos São Francisco

Texto: Karine Braga
Fotos: Guilherme Andriani



Quando novas bandas vão se formando, um desafio a elas se impõe: apresentar um trabalho autoral, correndo maiores riscos de rejeição ou apostar nos chamados “covers”, garantia de maior receptividade, cuja tendência, entretanto, é desaparecer tão logo o público se enfastie? Sendo difícil apostar numa ou noutra via, muitas vezes, os músicos optam por uma espécie de trabalho mesclado, em que um ou outro trabalho autoral vem à tona.
Pois medo de rejeição, definitivamente, não foi marca do início da trajetória do Clube de Patifes. Há 12 anos, a banda tem apostado no blues-rock, justamente em Feira de Santana, esta cidade onde se come “pirão com carne assada de volta do curral”, como disse o poeta Eurico Alves. Nascido entre estudantes da UEFS, o grupo aceitou (e superou) o desafio de solidificar um trabalho autoral e contribuiu para desfazer a concepção purista de que só se canta blues em inglês.
A cada vez que sobem ao palco, Pablício Pablues (vocal e gaita), Paulo de Tarso (bateria), Jo Capone (baixo) e Stephen Ulrich (guitarra) conquistam novos fãs. Também é certo que haja um público fiel, a cantarolar as letras eivadas de certa influência bukowskiana, nas quais se destacam a bebida (e os porres) e as conquistas amoroso-sexuais (e, algumas vezes, as decepções delas decorrentes) de quem vive na noite. Exemplos são as canções “Barfly”, “Fele-me” e “Noite em claro”, ícones do primeiro álbum, “Do palco ao balcão” (2001), considerado, pela crítica especializada, um dos melhores discos de blues do Brasil. Foram vendidas 3 mil cópias, um número significativo se levarmos em conta dois fatores: a disponibilidade para download na Internet e o fato de ser uma produção independente, sem o selo das grandes gravadoras.
O segundo álbum demorou a sair. Percalços como mudanças de formação no grupo contribuíram para a delonga. Mas valeu a pena esperar por “Com um pouco mais de alma” (2009), que traz 11 músicas. Tem a participação do cordelista Bule-Bule, na vinheta “Bule Bule Trazendo a verdade”, que introduz “Mulher de repente” e exemplifica a proposta de “unir as águas do Mississipi com as águas do São Francisco”, ou seja, valorizar, a um só tempo, tanto a batida do blues e do rock’n’roll como a herança nordestina. Tantas músicas se destacam nesse sólido trabalho que destacar uma ou outra me faria injusta.
Muitos momentos significativos marcam os 12 anos do Clube. O primeiro show, numa festa do curso de Administração, em 11 de novembro de 1998. A estréia para a cidade, no CUCA, em 1999. Shows na UEFS (nas antigas Calouradas) e nos bares da cidade, como Jeca Total, Bavária e Boca do Caranguejo (os dois últimos, já extintos). Mais tarde, apresentações em Salvador, no antológico bar Café Callypso, no Rio Vermelho.
Nos últimos anos, os patifes têm ultrapassado as fronteiras da Bahia. Participaram de festivais importantes, como o Panela Rock, em Fortaleza (CE) e o Usina da Cultura, em Mossoró (RN). Sergipe e Minas Gerais também fizeram parte dessa turnê. Com “olhos abertos, mente aberta”, eles pretendem alargar ainda mais os horizontes em 2011.
Haveria surpresa nisso? Penso que não. Num breve encontro com Joilson Santos, o Jo Capone, de pouco mais de quarenta minutos, fica fácil perceber que, além de genuinamente talentosos, esses rapazes são daqueles que têm, cravada nos olhos, a sede do infinito. Audaciosos, tornaram-se, nos últimos três anos, peças fundamentais no agito da cena rocker baiana, sobretudo do interior. Idealizaram a Alcatéia Produções que, integrada ao Capivara Coletivo e ao Feira Coletivo Cultural, é responsável pelo projeto “Noites baianas”. Concentrado em dois dias, o evento, realizado em Feira de Santana e Camaçari, contou com 10 atrações, tanto do interior como da capital. É a boa música alternativa se fortalecendo na Bahia.


Com o Feira Coletivo Cultural, o grupo tem muitos projetos para 2011
                                        



O Feira Coletivo Cultural, que está completando um ano, é um núcleo organizado que integra múltiplas linguagens e visa trazer novas perspectivas à cultura feirense, através de atividades diversas. Propõe a organização de atividades para a formação de platéias, ou seja, atividades que estimulem o público a criar o hábito de frequentar certos ambiente culturais, fortalecendo a sustentabilidade no mercado cultural da região.
“O problema de Feira de Santana” – diagnostica Joilson Santos – “é que os espaços não são democráticos”. Ele se refere à carência de divulgação e solidificação do circuito música alternativa. Para mudar esse cenário, surgiu o Feira Noise Festival, que aconteceu, em suas duas edições, no Centro de Cultura Amélio Amorim.
 O evento foi concebido para busca reforçar os alicerces da música contemporânea local e regional e toda a diversidade artística no interior baiano, promovendo a integração entre seus agentes produtivos, sejam eles artistas, produtores, distribuidores, jornalistas, etc., bem como apresentar um panorama da produção musical que vem sendo produzida, reunindo desde o jazz, blues, música eletrônica, rock e a música popular da região. Único festival de arte integrada do interior baiano, está conectado com o Circuito Fora do Eixo (movimento cultural que reúne produtores, artistas e jornalistas de mais de 40 coletivos diferentes em todo o Brasil).
Mesmo tendo reunido reuniu diversas atrações do Nordeste do País, a primeira edição, realizada em julho de 2009, teve uma aparição tímida. Em outubro de 2010, a segunda edição, maior, mais diversa, com atrações de todo o país, reuniu de 600 pessoas durante os três dias – embora, como afirma Joilson, esse número poderia ser bem mais expressivo se houvesse mais parceiros na produção, que ficou por conta apenas do Feira Coletivo Cultural.
Além de apostar nos artistas que privilegiam o trabalho artístico criativo e de qualidade em detrimento dos formatos consagrados pela indústria fonográfica, o Feira Noise ainda discutiu a produção cultural em Feira de Santana, as políticas públicas para a Cultura, com debates, palestras e oficinas que também integraram a programação do Festival.
Muitas outras noites de boa música alternativa virão em 2011, por iniciativa do Feira Coletivo Cultural. O objetivo é que os eventos ocorram em frequência quinzenal, a fim de inserir a cidade no mapa das turnês que a rede Fora do Eixo vem viabilizando desde 2009. Com o apoio, procura-se fortalecer, incentivar e dar sustentabilidade à cena independente, algo que seria impraticável se não houvesse intensa comunicação entre os diversos coletivos do país, no intuito de construir uma cultura de auxílio mútuo.


Texto publicado no Folha do Estado - edição 3.358, 5 de dezembro de 2010, a pedido de Paulo Rabelo

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