sábado, 22 de outubro de 2011

Rosa Scarlett por ela mesma

                                     
Foto: Patrícia Martins


Rosa Scarlett se submeteu à cirurgia de troca de sexo na Espanha, no dia 07 de março de 2006

Depoimento de Rosa Scarlett

A partir de meus seis anos de idade a vizinhança notou que eu era um menino diferente dos outros garotos, que eu era muito delicado. Com o passar do tempo eu fui confirmando aquelas suspeitas. Mas foi com 16 anos que eu comecei a deixar de lado as roupas de menino e a assumir minha feminilidade. Foi bastante difícil, pois eu morava com meu pai, minha mãe, uma irmã, um irmão e um avô, aqui mesmo em Feira de Santana.

Comecei a fazer programas antes de sair de casa, quando comecei a me vestir como mulher. Minha família começou a desconfiar, quando comecei a sair frequentemente à noite e a me ver com dinheiro sem ter trabalho formal, e foram investigar. Foi nesse período também que comecei a tomar hormônios.
Apesar de minha relação familiar ter sido sempre difícil, eu nunca fui posta pra fora de casa. Fui eu mesma que decidi sair de casa quando tinha 19 anos. Na época eu tinha um namorado e a gente resolveu morar junto.Em 1999 comecei a juntar dinheiro para colocar os seios, mas no final daquele ano tive a chance de ir para a Espanha, onde morei pouco mais de 10 anos. Com alguns anos morando na Espanha me inscrevi num programa do serviço de saúde pública de lá, que ajuda as transexuais a fazer a troca de sexo. Eu passei três anos numa lista de espera. Foi bastante difícil conseguir, porque eu não era de lá. Eu já nem me lembrava mais da inscrição, quando um dia eu estava num supermercado com meu parceiro e meu telefone toca. Do outro lado da linha uma moça me falou que eu faria a cirurgia dali a duas semanas e que era para eu estar lá no hospital 12 horas antes da hora marcada para a cirurgia. O meu namorado foi de fundamental importância no período em que tive que ficar em casa para me convalescer. Foi um anjo para mim.
Normalmente, esse tipo de intervenção lá na Espanha é feito com duas cirurgias. Mas é uma coisa muito dolorosa e eu precisava trabalhar, por isso optei por fazer tudo numa só cirurgia, que durou cerca de seis horas. Nessa operação foram retirados os testículos, feito o canal vaginal, retirado todo o corpo cavernoso de meu membro masculino, o canal urinário foi invertido e com a glande foi feito o clitóris. Apesar dessa complexidade, essa cirurgia foi menos dolorida que a que eu fiz no meu nariz.
Aqui no Brasil ainda não tive necessidade de ir a um médico, mas eu penso em ir a um hospital que tem em São Paulo, que é referência em cirurgias de mudança de sexo na América Latina. Quero ir lá para ver como é que estou e para conhecer o método que é aplicado por lá, pois tenho entendido que cada país tem um método para fazer esse tipo de cirurgia.
Antes da chamada, eu já havia passado por uma série de avaliações com psicólogo, psiquiatra e endocrinologista, pois eles tinham que ter certeza que era isso mesmo que eu queria e que eu estava bem, tanto física quanto psicologicamente.
Quando eu fiz a cirurgia já havia colocado as próteses mamárias, estava superfeminina. O silicone dos quadris (líquido) eu havia colocado no Brasil, antes de ir para a Espanha.
Ganhei dinheiro enquanto estive por lá, fazendo programas. Mas eu não vivia em função da prostituição, eu também queria ver o lado bom da vida e aproveitava para ir a shows e festas e curti muita praia por lá, principalmente em Andaluzia e em Málaga. Hoje, tenho mais de duas mil fotografias nas minhas páginas na internet, pra provar para mim mesma que eu aproveitei aquilo tudo o máximo que pude, pois sabia que um dia ia terminar.
Quando eu voltei para o Brasil, em outubro do ano passado, pensava que as coisas iam ser mais fáceis, pois já conhecia como funcionam as coisas por aqui. Meus planos era conseguir logo um dinheiro para me estabelecer por aqui até partir para trabalhar em outra área, pois tenho experiência em venda de cosméticos e roupas. Quando as coisas melhorarem para mim, farei alguns cursos, pois não quero viver de programas a vida inteira.
Depois que voltei pra cá, vejo que me desiludi bastante. Eu achava que as coisas iam ser mais fáceis, mas as pessoas ainda não estão educadas para ver a diferença entre uma transexual, um gay ou uma travesti que está começando, para eles é tudo a mesma coisa. Mas não é bem assim.
Há dois meses entrei com um pedido na Defensoria Pública para mudar o prenome. Lá os advogados disseram que não haverá muito problema para eu conseguir a mudança de nome e que, inclusive, meu caso já estaria sendo avaliado por um juiz. Por eu já ter trocado de sexo, será mais fácil trocar o nome.
Hoje, apesar de todas as dificuldades que a vida me apresenta, eu sou uma pessoa feliz e só quero que as pessoas me respeitem pelo que eu sou, assim como respeito a todos.

* Publicado no Folha do Estado, edição nº 3.583, no dia da X Parada Gay de Feira, 28 de agosto de 2011

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